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quarta-feira, 15 de março de 2017

Footing em Porto Alegre

A prática do “Footing”

Porto Alegre se projetava com o espetáculo burguês do viver em cidades.

- As confeitarias, os cafés, os theatros, as associações carnavalescas, os prados, o “Footing”  na Rua da Praia, as sessões iniciando pelos cinemetógraphos, constituíam os ambientes e as sociedades que atuavam como palco de uma moda europeia para a burguesia porto-alegrense.

- A prática do “Footing” — do inglês passeio a pé, caminhada — consistiu em um hábito citadino que persistiu por décadas não apenas na cosmopolita Porto Alegre, mas também em outras cidades do país. 

- Tratava-se do costume de, ao cair da tarde, no encerramento dos expedientes de trabalho, as pessoas vestirem o que de melhor tinham e dirigirem-se ao centro urbano.

- Em Porto Alegre, o “Footing”  acontecia na Rua da Praia.


Cortesia - Galanteio

- Os praticantes tinham o objetivo de verem e de serem vistos um pelos outros. Este ato sempre existiu, mas no início do século XX, começou a se transformar em um ritual.


Prado Rio Grandense - 1909

Tipos de Footing
- Era assim que rolava a paquera, piscadela, olhares até alguém criar coragem.

- O divertido ritual de paquera consistia em dar voltas em torno de uma praça, em algumas cidades moças em um sentido e rapazes no sentido contrário, em outras, moças rodando e rapazes na calçada observando.

- As meninas passeavam de braços dados e os meninos olhavam. "Risadas, pequenas sem-vergonhices. Passavam-se semanas até que o rapaz dirigisse o primeiro olá à sua eleita".

- A paquera ia rolando, quando o interesse era mutuo saiam da roda para conversar. Muitos casamentos saíram de Footing.

- No Sábado a maioria das vezes, aquele menear coletivo feminino resultava apenas em flertes e, assim como um espetáculo, encerrava a sessão às 22 horas.

- Depois vinha o Domingo, e mais Footing.

Nota:
- O paraibano Loêncio Ramos lembra com saudade do footing na Rua Maciel Pinheiro, em João Pessoa, no fim da tarde. "Lá eram dadas as primeiras investidas, junto às garotas, preparando o campo para um avanço mais ousado, no domingo à noite, após o término da missa na Catedral", relata. Ele conta ainda que essa paquera se estendia até, no máximo, às dez horas da noite.


Footing em Porto Alegre - década 1960

Comunicação
- Não havia celular, computador e o telefone, além de ser quase mobília da casa, era algo que, na juventude, gerava o risco de se ouvir a voz do pai, da mãe e, na melhor das hipóteses, do irmão ou da irmã da(o) prometida(o).
Afinal, o número era familiar e não individualizado como é hoje.

Pais vão Buscar
- Alguns pais iam para buscar suas filhas. Porém, as jovens, com a empáfia púbere, que já afetou a todos nessa idade, a fim de evitar o mico de serem vistas escoltadas pelo pai, regressavam sozinhas, ou não, no ir e vir do relógio.
Insinuar-se
- Era exatamente no subir dos créditos, no fechar das cortinas, no percurso de volta, no pescoçar do cuco, que mãos e pernas tornavam-se cúmplices, muitas vezes acompanhadas de silêncio, olhares de rabo de olho e risos de cantoneira de boca.


O Possível Beijo
- O Footing era o enredo. O portão dela o clímax. Da esquina à campainha era um suspense de Hitchcock, pois, além da incerteza e insegurança do beijo, havia a possibilidade de derrocada proporcionada pelo pai dela à espreita, qual namoradeira em janela.

Sagrado e Profano
- O Footing ocorria em duas situações: no sagrado e no profano.
Rapazes se alvoroçavam para ir à Missa, mas não para provar o sabor da hóstia. O objetivo era o pós-missa. A praça, vulgo jardim, apinhada de pessoas a borboletear, era o êxtase adolescente.

- O ritual migrou para os corredores de lojas e restaurantes.

- Na praça de alimentação e em seu entorno, era possível ver o vaguear, qual gado em leilão, da puberdade ouriçada e tímida por um flerte.

Nas Escolas
- Até mesmo nas escolas havia o Footing do recreio. Os garotos escorados nas paredes dos corredores, ao redor da cantina, parados no pátio, observavam, flertavam e paqueravam as garotas que preferiam saracotear a merendar.

Alunas do Colégio Bom Conselho fazendo “Footing”
Lilian Wild, Mafalda e Dolores Scholz.

Formatura mocas do Colégio Bom Conselho

Frustração
"O ‘Footing’ era o lugar do primeiro encontro, dos olhares apaixonados, do bate-papo descontraído". Essa mistura de espreitada, esperança e encantamento, às vezes, levava à frustração, quando a pessoa amada não enxergava quem tanto a admirava.

Nada Comercial
- A prática não tinha nada de comercial - como pode rolar hoje com os adolescentes que se encontram em shopping centers, por exemplo - e nem era tão independente.

"Os rapazes faziam uma parede para apreciar o passeio das meninas. Ninguém comprava nada, era só o passeio".

- Além da paquera entre os jovens, era comum a presença das famílias também.

Década de 1920

Lá pelos anos 1920 - e até talvez os anos 1960/70 - paquerar era sinônimo de caminhar pelas ruas e, claro, flertar quando pudesse.


Rua da Praia -1930

- O "Footing", que vem do inglês ‘ir a pé’, acontecia principalmente nas cidades pequenas. As moças colocavam o melhor vestido e saíam para caminhar com um objetivo claro: ser observada pelos rapazes, igualmente bem arrumados.

Porto Alegre de 1920
- As fontes consistem em três poemas e duas cartas de amor.
Os poemas intitulam-se “Footing”, “As Praças Velhas” e “Canção dos Arrabaldes”. Todos foram manuscritos a lápis de cor azul.

- Os dois primeiros possuem referência a mês e ano: agosto de 1923; o que não possui data, todavia, foi escrito no mesmo tipo de papel, com o mesmo lápis de cor azul. As cartas datam, uma de agosto de 1924 e outra de 15 de outubro de 1925.

- Tais documentos não serão aqui reproduzidos integralmente, mas as partes deles transcritas serão destacadas em quadros numerados e indexados ao final, conservando-se sua grafia original. A identidade das pessoas envolvidas será preservada. Em comum, estes escritos têm entre si o fato de pertencerem a um mesmo arquivo privado e de se referirem a fatos que tiveram lugar na cidade de Porto Alegre.

[...] a cidade, na sua compreensão, é também sociabilidade: ela comporta atores, relações sociais, personagens, grupos, classes, práticas de interação e de oposição, ritos e festas, comportamentos e hábitos.
Mas a cidade é, ainda, sensibilidade, [...]. Cidades são, por excelência, um fenômeno cultural, ou seja, integradas a esse princípio de atribuição de significado ao mundo.

- Ao examinarmos o poema intitulado “Footing”, encontramos ali descritos valores que sofrem um questionamento por parte de Francisco, em nítido contexto de sociabilidade.

Na tarde radiante, todos vão a passeiar, todos vão a rodar, todos vão a gyrar. Pelas ruas, ascende o perfume da graça, incensando, amoroso, a alegria que passa, a alegria efêmera e bôa dos momentos.
Quadro 01 ―“Footing”

- Francisco abstrai-se do contexto onde os personagens vão a “passeiar”. Ele enfatiza a artificialidade destes “passeiantes”, atores que giram no palco da cidade, que rodam, que se movimentam na efemeridade do instante, quando o perfume apela à sensorialidade e a alegria se propaga como esse incenso, cuja duração é passageira, provisória, faceta da cidade que se traduz por uma multiplicidade de estados onde a individualidade se perde, e da qual o poeta se exclui, para melhor poder pensar sobre o que vê:

Eu fico a ver esta onda humana que, agitada, a rodopiar, passa ante os meus olhos cansados. (Que philosophia deliciosa, aphilosophia das attitudes!)
Quadro 02 ―“Footing”

- Há um viés crítico indisfarçável onde o poeta questiona os valores que levam os “passeiantes” a executarem seus giros. Ele procede a uma leitura axiológica do comportamento dos que se entregam àquela prática cotidiana. Francisco desenha para si mesmo um local de fala de onde não apenas narra o que se passa à sua volta, como ainda descreve o cenário e disserta sobre os elementos que tematiza poeticamente. Enfim, ele filosofa sobre o que identifica poeticamente nas práticas do dia a dia:

Todos passam... Homens activos, preocupados, homens vagarosos, homens sabios, mulheres faceiras, a entoar, nos gestos, o hynn imprudente e ridículo da sedução, mulheres futeis, mulheres inuteis, todos passam pelas ruas, todos andam, vertiginosamente, pela calçada anonyma das ruas, atraz de um fim, atraz de um destino...
Quadro 03 ― “Footing”

- Francisco descreve uma cidade onde o comportamento dos personagens que nela se movem são referenciados com juízos de valor. A vaidade feminina é francamente hostilizada, ficando claro que ele, poeta, não se deixa seduzir pelo artificial, muito embora não seja indiferente a esse feminino que se expressa por gestos sedutores.

- Um feminino urbano, citadino, competitivo, performático, ciente da presença de outros femininos dentre os quais pretende destacar-se. Nessa cidade de fragmentos que nos é servida em versos, sobrevive um testemunho quase profético no que respeita a nossa contemporaneidade, que impõem um ritmo ainda mais vertiginoso a esses deslocamentos.

E a multidão toda passa, num torvelinho, agitando-se num movimento de vida. E é uma vitrina esplendorosa onde rebulha a moda, em facetas de luxo e novidade, pondo os olhos feminis, em mil curiosidades, o grupo delicado das futilidades decorativas dessas aves dos salões que, ante ella, em bandos garrulos, alegremente, conversam e discutem, encantadoramente.
Quadro 04 ― “Footing”

Bresciani (1997, p. 16) já acentuava: “Modernidade é o transitório, o rápido, o contingente”. E o homem que se encontra em meio a essa modernidade:

 [...] vive o impacto da fragmentação, do efêmero e das mudanças caóticas e forma sua sensibilidade no centro da experiência de tempo, espaço e causalidade, sentidos equacionados como transitórios, fortuitos e arbitrários (Ibid., 1997, p. 15).

- Há, porém, os contrastes que esse urbano comporta. Contrastes que também podem ser observados a partir do confronto entre “Footing” e — como agora se verá — “As Praças Velhas”.

- De um lado, os centros e o torvelinho dos que acorrem ao passeio: uma sociabilidade cheia de códigos aos quais Francisco se propunha a decifrar através de sua filosofia das atitudes; de outro, o espaço urbano que já foi palco de acontecimentos, mas que sofreu depois o abandono. Como as velhas praças, cenário onde se insere a sensação do nostálgico, do anacrônico que só tem de si aquilo que foi. O que não encontra mais pertinência no presente vive do passado que só pode sobreviver através de sua evocação, seguindo a pista dos rastros:

Pobres praças velhas!
Como me comove a sua melancolia,
como eu amo, como eu adoro as praças velhas,
com as suas árvores senis e belas,
.....................
com seu pobre repuxo,
antes faiscante de luxo,
de rica pedraria,
agora, mudo e repassado de ironia,
na sua melancholica solidão
Quadro 05 ― “Praças Velhas”

- A relação é de memória e esquecimento. A emoção do poeta se expressa pela simpatia, pela identidade que alega estabelecer com a melancolia que percebe no lugar. Sua sensibilidade o faz ver —para além da decadência e da mudez do repuxo de “rica pedraria” — o passado da praça, que já fora glorioso. Do mesmo modo, em prosopopéia, atribui senilidade às árvores, às quais não retira beleza. Francisco é anacrônico. Vive em si um tempo diferente do real que acontece à sua volta.

- Está na praça, mas a partir dos dados presentes, dos elementos materiais concretos que o cercam, ele evoca outro tempo, onde situa a mesma praça em outra dimensão temporal, tecendo como que duas perspectivas que só são interpenetráveis pela poesia, pelo elemento nostálgico: “O nostálgico não será mais reconhecido como aquele que está fora de um lugar físico, mas como a figura de um sujeito que vive fora do seu tempo”, diz Beneduzi (2008, p.19).

Pobres praças velhas,
Onde o tempo poz a irradiação da agonia,
E a velhice pintou, no gesto do silencio,
A magestade da melancholia
Quadro 06 ― “Praças Velhas”

- O paradigma é claro. Francisco vive um tempo impossível, que o faz prisioneiro de um sentimento que ele mesmo aponta como sendo a agonia, que embora atribua à praça, é mesmo dele, algo que projeta no lugar, conferindo-lhe um sentido que, em última análise, é pertinente a ele, poeta. Com isso vive uma angústia que não é apenas sua, que não é particular à própria subjetividade, mas que acomete o homem moderno:

No final do século XVIII, o advento da sociedade moderna traria consigo uma profunda transformação na percepção da nostalgia, porque se experimenta, então, uma nova imagem do tempo.

- O mundo pré-moderno apresentava uma vinculação recorrente entre temporalidade e espacialidade, uma vez que a recordação de momentos passados e das horas do dia era vinculada a espaços mnemônicos que criavam a completude do entendimento sobre a variação temporal, ainda que de uma maneira imprecisa e variada. (BENEDUZI, 2008, p.23)

- Ora, a recordação morre — a decadência do local, no caso, a praça velha — deixa entrever apenas vestígios do passado, o que gera angústia e tensão, pelo componente impreciso provocado pela variação temporal:
Pobres praças velhas!
que já conheceram a agitação,
o tumulto, o delírio e a vida de um movimento;
que já conheceram
todo o esplendor, todo o deslumbramento
dos dias de festa, dos dias de alegria,
quando uma intensa e louca multidão
porellas rodou, gyrando no turbilhão.
................................
Pobres praças velhas!
Uma recordação que vae morrendo,
Uma saudade que vai vivendo.
Quadro 07 ― “Praças Velhas”

- Se a recordação morre, a saudade vive. Fica assente aqui a sensibilidade do poeta que associa memória e emoção; a memória, todavia, requer um espaço, não apenas a individual, mas também a memória coletiva. Chama a atenção que o particular aqui, carregado de subjetividade, possa expressar o coletivo, e justamente pela via da sensibilidade. Quando

- Francisco se depara com a praça e seu abandono presente, faz a leitura sensível das marcas e vestígios, assentando-as num registro que chega a até nós, porque se trata de uma memória comum, compartilhável e, por que não, coletiva:
Não há memória coletiva que não se desenvolva em um quadro espacial.

- Ora, o espaço é uma realidade que dura: nossas emoções concorrem entre si, nada permanece em nosso espírito, e não se compreenderia que pudéssemos retomar o passado se, com efeito, não o conservássemos pelo meio material que nos cerca. (HALBWACHS, 2008, p. 146)

- O terceiro poema a ser examinado chama-se “Canção dos Arrabaldes”. As notas tristes se repetem, não como na praça, cujo lamento decorria de um tempo passado, de um ontem que já foi glorioso, festivo, marcante. Os arrabaldes são tristes, porque monótonos, porque empobrecidos, acanhados e sem expressão econômica que lhes empreste majestade. São diferentes nichos urbanos da cidade que Francisco nos mostra em sua poesia:

Arrabaldes de muros quebrados,
Das casas pobres e pequeninas,
Das ruas desertas e cheias de pó,
Por onde passeiam, ironicamente,
Entre a poeira doirada do caminho,
A ansia e o tedio da vida.
Quadro 08 ― “Canção dos Arrabaldes”

- Nos arrabaldes não acontece o “Footing”. Eles modulam um viver tedioso, e isso é ironizado pelo poeta, porque a poeira do caminho, sendo dourada, não deveria produzir os sentimentos que ele constata. A prosopopeia, neste caso, omite o sujeito: o homem que ocupa aquele espaço.

- O poeta registra a diferença social e mesmo o caráter excludente desta paisagem, onde não brilha o luxo citadino, onde não desfila a vaidade, onde os comportamentos se moldam a um ambiente no qual tempo é percebido de modo diverso. Na poesia, o espaço determina o homem, confere-lhe um destino. Os arrabaldes de Francisco persistem hoje na periferia das grandes cidades, cujo caráter determinante da exclusão social não parece duvidoso.

- A cidade sempre se dá a ver, pela materialidade de sua arquitetura ou pelo traçado de suas ruas, mas também se dá a ler, pela possibilidade de enxergar, nela, o passado de outras cidades, contidas na cidade do presente. Assim, o espaço construído se propõe como uma leitura do tempo, em uma ambivalência de dimensões que se cruzam e se entrelaçam. (PESAVENTO, 2007, p. 16)

- Francisco, ao descrever os arrabaldes, nos dá pistas de quem são os sujeitos que se encontram inseridos naquele espaço. Lugares e grupos mantêm relações de identidade.

- Quando um grupo está inserido em uma parte do espaço, ele o transforma à sua imagem, mas, ao mesmo tempo, ele se dobra e se adapta às coisas materiais que lhe resistem. Ele se encerra no quadro que construiu. A imagem do meio exterior e as relações estáveis que mantêm com esse meio transmitem, em primeiro plano, a ideia que ele faz de si mesmo. (HALBWACHS, 2008, p. 132)

- Até aqui ocupamo-nos de poemas que tinham por tema a cidade a partir de três diferentes perspectivas. Agora examinaremos parte do conteúdo de duas cartas que Francisco remeteu à Maria. Na primeira delas, Francisco conta que andou pela cidade buscando encontrar a amada, ainda que a soubesse distante. Ou seja: ele volta a percorrer o espaço físico da cidade, provocando a memória, para assim sentir-se mais próximo da mulher amada: - Maria ― Longos dias a te procurar em vão, andei pelas ruas da cidade. Meu vulto doloroso, meio esbatido entre a nevoa destes ultimos dias, era todo o anceio de uma busca e o desanimo de uma desillusão. Tu não me apparecias...

Quadro 09 ― Carta de agosto de 1924

- É tentador comparar a poesia de Francisco à de Baudelaire (1857 apud BRESCIANI, 1997, p. 14), quando ambos falam de sua vivência do urbano:

Dans les plis sinueux des vielles capitales,
Oú tout même l’horreur, tourne aux enchantements,
Je guette [...]
............
La forme d’une ville
Change plus vite, helás,
que le coeur d’un mortel [...]
Le cygnet 1
(BAUDELAIRE, 1857 apud BRESCIANI, 1997, p. 14).

- Nesses dois relatos sobre as sinuosidades das capitais encontram-se observações a propósito das mudanças. Todavia, o coração é estável. O de Francisco não se deixa demover nem pela névoa, nem pelo tempo decorrido. Ele procura Maria, mesmo em vão. Procura-a ainda que saiba que não a encontrará, porque nesta busca evoca sua memória, presentifica-a nele mesmo.

- O coração de Baudelaire, por sua vez, muda menos rapidamente que essa cidade, a velha capital da qual fala, sinuosa, ora encantadora, ora terrível. Com alguma atenção, podese perceber uma quebra de identidade, um estranhamento: o tempo do coração em ritmo diverso do tempo da cidade. Francisco prossegue, descrevendo as voltas que dá pelos caminhos da cidade onde não encontra Maria:

1 Em dobras sinuosas das antigas capitais/ Onde mesmo o horror se transforma em encantamentos/ Eu observo [...] ............ A forma de uma cidade/ Infelizmente, muda mais depressa/ que o coração de um mortal [...].

- Da primeira claridade do dia, no meio do bulicio, entre o torvelinho humano, à meia tinta do crepúsculo, sempre em vão, rodei pelos caminhos, em procura da minha vida, em procura de mim mesmo...

Quadro 10 ― Carta de agosto de 1924

- Marcas de sensibilidades: o homem que não mora em si mesmo, que busca a si próprio na amada, cujo vulto se perde entre o torvelinho humano e as meias-tintas do entardecer, ocasionando-lhe o engano, a ilusão que ele reconhece como tal, na efemeridade do imaterial:

- E tua figura, vezes e vezes, ephemeramente, aos olhos da minha illusão, na figura das outras mulheres que passavam, vagas, indistintas, tecendo o meu engano.

- Rodavam comigo a Saudade, a soluçar a canção das lagrimas, e o meu cigarro.

Quadro 11 ― Carta de agosto de 1924

- Cumpre agora examinar a última das cartas escolhidas para esta pesquisa. Ela foi deixada para o final, porque sua interpretação vai nos remeter à própria cidade imaginária, a

- Porto Alegre situada no espaço-tempo da sensibilidade: a Porto Alegre mulher, a Porto Alegre guardiã que protege e esconde Maria:

- Como vae essa mulher? “Que mulher?”... Essa que vive eternamente deitada, numa indolência de princesa oriental, ao longo do Guahyba, a espelhar no Crystal móvel das suas aguas? Essa, em quem Deus, no logar da boca, em vez de boca, poz um coração a sangrar de amor? Essa, em louvor da qual o sol acende lampadas de ouro?

- Essa, que esconde, num dos seus palácios encantados, a menina linda, a menina feliz, que é, afinal, a menina destes olhos tristes e exilados? Do teu Francisco.

Quadro 12 ― Carta de outubro de 1925

- Essa passagem é mais enigmática do que se pode supor numa primeira leitura.

- Francisco fala de Porto Alegre, refletida pelo Guaíba, pelo cristal movediço de suas águas, em sua indolência de princesa das mil e uma noites, e por isso adjetivada de oriental. É uma cidade que não fala, pois no lugar da boca lhe foi posto um coração. É uma cidade muda, que guarda um segredo, o segredo de um amor que causa sofrimento, daí o coração que sangra.

- É uma cidade que o próprio sol louva, quando acende lâmpadas de ouro, ou seja, sempre que acontece, em Porto Alegre, seu famoso pôr do sol. E é uma cidade que esconde, em um de seus palácios encantados, a menina feliz, Maria, que habita uma das casas desta cidade especular, cidade que, como a Valdrada de Calvino (1985, p.53), nasceu à beira de um lago, formando assim outra cidade, idêntica, que repete coisas e pessoas, pois: “Nada existe e nada acontece na primeira Valdrada sem que se repita na segunda”. Extraída de seu próprio espaço, ela se concretiza na intimidade do leitor.

- Francisco faz como Calvino ao apresentar as suas cidades invisíveis, propondo ao leitor que se identifique com múltiplos fragmentos que quase sempre encontra em si, conduzido por alguma memória que lhe ficou de lugares que já percorreu. Ele também fala de cidades que não podem ser localizadas nem no espaço nem no tempo, mas que se concretizam na imaginação, como as que Marco Polo descreveu, ou mesmo criou, com a performance de seu discurso.

- Há coisas não sabidas dos homens, e para as quais só os deuses têm respostas. Isso ocorre quando se está diante de um “processo imaginário de construção de espaço-tempo, na invenção de um passado e de um futuro, a cidade está sempre a explicar o seu presente”, diz Pesavento (2007, p. 17), ao referir-se à obra de Calvino:

- É preciso, diz ele, buscar os elementos comuns que distinguem uma cidade da outra. Tal como os antigos, que buscavam o espírito da cidade invocando os nomes dos deuses que presidiram a sua fundação, os homens modernos precisam exercer uma espécie de despojamento do olhar, identificando, simplificando e reduzindo a multiplicidade de traços que uma cidade oferece para dizer quem é.
- Dificilmente se pode classificar como menos do que evidente esse conteúdo universal que se depreende dos escritos de Francisco, não obstante o caráter tanto particular e privado da correspondência, quanto a subjetividade do escritor. Se compararmos entre si todas essas diferentes propostas do ambiente urbano, encontraremos nelas as mais diversas intensidades da ligação do homem ao meio, ou, ao dizer de Bresciani (1997, p. 20), diferentes “fragmentos do imaginário social”.

- Estes restos arcaicos, traços, resíduos, fragmentos de várias camadas de imagens que ligam o homem-livre à cidade compõe representações globais da sociedade, ideias-imagens por meio das quais as sociedades, vale dizer, nós, os habitantes das cidades e os urbanistas que pensam e projetam as cidades elaboramos uma auto-identidade individual e coletiva.

- Ora, quem é Porto Alegre senão que a cidade onde o amor acontece? A cidade onde mora Maria. Esta Porto Alegre é composta de fragmentos da escrita de Francisco, particulares onde se escondem universais, células do sensível — poemas e cartas de amor — que se abrigam no social — o ato de cartear-se, a comunicação que se estabelece entre um eu que fala e outro que escuta.

- Interceptar essa conversa, depois de passadas décadas, não é obra de imaginação nem delírio de um pesquisador que, supostamente, pode pensar-se como mais próximo aos domínios da arte que aqueles da academia. Pensamento e linguagem não se limitam à lógica formal, antes a lógica se torna formal por determinação que ambos lhe assinam.

“A compreensão concede à imaginação um lugar essencial na construção da história. Transferir para uma situação histórica esquemas explicativos, experimentados no presente, colocar-se no lugar daqueles que se estuda, é imaginar situações e homens” (PROST, 1996, p. 168).

- Cada vez mais se buscam novos referenciais que nos permitam compreender a relação entre homem e cidade; novas fontes e novos objetos se oferecem ao pesquisador. “Compreender, no entanto, nada tem de uma atitude passiva. Para fazer uma ciência, será sempre preciso duas coisas: uma realidade, mas também um homem” (BLOCH, 2001, p. 128)

Década de 1940

Pela década de 1940, se cruzavam naquela rua olhares inocentes e sorrisos cheios de futuro. 

"Propostas que hoje não soariam tão indecorosas quanto as que algumas vezes fizeram acelerar nossos coraçõezinhos".

Naquela época, esse era o jeito mais fácil de rapazes e moças se encontrarem e se apaixonarem.



Ekegancia na Rua da Praia ( Andradas)
No Fim de Semana
- Os homens andavam dando voltas e as moças faziam o caminho contrário - e assim muitos se 

- A hora do Footing era sagrada, começava pela noite de sábado e terminava na tarde de domingo. As primeiras donzelas iam chegando de mansinho, sempre acompanhadas de amigas ou familiares. Um pouco mais tarde chegavam os homens, e então começava o Footing.

Começar o Fim de Semana
- Programa tradicional do porto-alegrense, também tradicional, começa com o café da manhã, geralmente acompanhado da leitura o Correio do Povo.

- Missa, culto, papo na Rua, aperitivo no boteco da esquina, preparar um churrasco ou, então, partir para aquele almoço em um parente ou restaurante.
Lá se foi a manhã e metade da tarde.

- À tarde uma boa sesta, porque ninguém é de ferro. Lá se foi o domingo de grande parte dos porto-alegrense.

- Os mais acesos ainda vão enfrentar um estádio de futebol; aqueles que não gostam da esbórnia se ligam na televisão, ou vão para o bar, assistir aos jogos acompanhados por uma gelada, porque ninguém continua sendo de ferro.
Esta rotina não é seguida por todos.

- Tem aqueles que passeiam nos diversos parques existentes na cidade. Outros dão um pulinho até as praias, Ipanema, Belém Novo, o nosso litoral.


Ipanema - Anos 1970

- Para a juventude, o grande programa de domingo é frequentar as lanchonetes e os cinemas de rua instalados na cidade.

- Nas domingueiras de antigamente, o negócio era diferente. As missas principais eram realizadas às 11 da matina – era um verdadeiro desfile de modas, o pessoal ia mais para se ver do que para assistir ao ofício religioso.

- Pela manhã, o movimento do Parque da Redenção era estritamente familiar, quando ali estavam os pais passeando com a crianças.

- Já à tarde, o ambiente era invadido pela soldadesca que vinha paquerar as empregadas domésticas, que curtiam sua modesta folga de domingo.

- Os cinemas no centro da cidade começavam seus movimentos logo pela manhã, com apresentações das matinés infantis com desenhos animados e até mesmo, incluindo na programação de auditório, a presença de artistas mirins que faziam parte dos programas da Rádio Farroupilha.

- Na parte da tarde, o centro de Porto Alegre fervia.

- Logo após o almoço, a juventude e mesmo o pessoal mais taludo desembarcavam aos magotes dos bondes e ônibus, vindos dos bairros e arrabaldes, enchendo as matinés dos cinemas.

- Ao término das sessões, era realizado um Footing pela Rua da Praia, seguindo por ruas adjacentes, e vice-versa. Havia domingos em que o tráfego de automóveis era interditado, ficando o leito dessas ruas para uso exclusivo dos pedestres.

- Os aficionados pelas corridas de cavalos se aboletavam no Prado do Moinhos de Vento. Principalmente nos domingos de Grandes Prêmios, quando a elegância dos frequentadores era a tônica da reunião. Para preencher parte do dia, ainda eram realizadas tardes dançantes por alguns clubes.


Prado Moinhos de Vento, Getúlio Vargas e comitiva - 1930

- O domingo porto-alegrense não se restringia ao centro da cidade, pois a periferia também se animava com os famosos festivais de várzea e as saudosas festas e quermesses das igrejas, que varavam o dia em animação constante proporcionada pelos serviços de alto-falantes, nos quais a rapaziada dedicava músicas para as moças, com o locutor sempre descrevendo como a homenageada estava trajada, o que causava rubor e risinhos na jovem apontada e nas que a acompanhavam.

E assim terminava um Domingo porto-alegrense dos bons tempos.

Década de 1950

- Cada época com seus costumes. Todas as noites, em Porto Alegre a Rua da Praia estava livre para que as pessoas pudessem fazer seus Footing. As moças colocavam o melhor vestido e saíam para caminhar com um objetivo de serem observadas pelos rapazes, igualmente bem arrumados.

- O ‘Footing’ era o lugar dos encontros, dos olhares apaixonados, da conversa descontraída. Naquela época, esse era o jeito mais fácil de rapazes e moças se encontrarem.



- Os homens andavam dando voltas e as moças faziam o caminho contrário.
Lá pelos anos 1950 até 1960 - paquerar era sinônimo de caminhar pelas ruas e, claro, flertar quando pudesse.

- Em Porto Alegre, nenhum aviso determinava normas para o Footing. Mas havia uma separação de classes sociais que todos respeitavam.

- Na calçada beirando aos prédios da Cinelandia, circulavam as moças da elite. Um verdadeiro desfile de modas.


Cine Imperial - Rua da Praia

Cine Vitória - Av. Borges de Medeiros

Lindas jovens, bem vestidas, tudo é época.



- No lado oposto, calçadão largo do Mercado, mal iluminado, circulavam as empregadas domésticas, negros e pardos - classe C.

- Na rua, lugar dos carros, a classe média, principalmente, rapazes e moças.

Nos anos 1950, em Porto Alegre, os chamados "Anos Dourados", com sua efervescência cultural, com os famosos Bailes da Reitoria da UFRGS, as lambretas da "Juventude Transviada", o crescimento econômico, a estabilidade social e os novos hábitos de consumo e entretenimento, geralmente não leva em conta o aprofundamento das diferenças sociais entre as classes e a segregação que aconteceu neste período, fato revelado pela rápida expansão das favelas e pela "Higienização" dos bairros nobres para uso exclusivo das elites.

Em 1955, Praça da Alfandega na época dos anos dourados o local de paquera da juventude porto-alegrense que freqüentava aquele local e desfrutava de momentos de alegria e descontração.

- Nessa praça também se praticava o famoso “Footing” seguindo até o período noturno pelas 22 horas, quando as moças andavam pela parte inferior das calçadas e os rapazes ficavam parados junto ao meio fio assistindo ao desfile e nessa passagem aconteciam os “flirts”, os olhares, os sorrisos, os galanteios e daí o começo de namoros e tantos casamentos.

O Fim do Footing
- O Footing zarpou ao som da buzina de navio. O tempo não afetou apenas a comunicação, mas a relação entre as pessoas. Alguns homens perderam o instinto perdigueiro que há mais neles. Deixaram de farejar e investir em mulheres desconhecidas.

- Ao passo que alguns adicionam mulheres desconhecidas em redes sociais sem, ao menos, tê-la fitado. O que antes demorava a expectativa de dias para dar prosseguimento ao diálogo, evoluiu em dedos, minutos e redes sociais.

- O melífluo tête-à-tête foi substituído pelo absorto tela-a-tela. A conquista, que era a prestações, hoje se tornou à vista

- A paquera, como a gente conhece hoje, despreocupada, direta, muito mais aberta, caminhou bastante para chegar onde está. E caminhou literalmente.


Rua da Praia (Andradas)

A Explicação
- A mocinha de 13 anos e inglês precário veio me perguntar: “Tio, o que era footing?” Duas coisas: ela pronunciou “fótingue”, sinal de que realmente desconhecia a palavra que acabara de ler em uma crônica brasileira dos anos 50, e disse “era”, dando a entender que para ela se tratava de coisa extinta; tipo máquina de escrever ou anel de doutor.

Foot eu sei que é pé, mas Footing? Pisando?
— Querida sobrinha, o sentido aqui dá uma escorregada, escorrega de “pé” para caminhada, o ato de andar a pé.
— Andar a pé não é walk?
— É, é também. Footing aqui não é verbo, é substantivo, é o ato de andar. Pode ter vários sentidos em inglês, mas esse aí do seu livro de crônicas é um lance brasileiro. A ideia é outra.
— Não tem sentido, tio. Aqui diz que elas foram “fazer footing alvoroçadas”

Como assim, “fazer” Footing? Fazer o ato de andar? Alvoroçadas com o quê?

Expliquei o melhor que pude: que era um programa de jovens de tempos atrás, um desfile, uma paquera coletiva, feita a pé; as moças caminhavam por um longo corredor de rapazes e de olhares, formado em volta de uma praça ou ao longo de uma avenida. Era como passear no shopping, só que não havia shopping nem vitrines, o que havia para ver e escolher eram as pessoas namoráveis.

Fiquei devendo nessas explicações, mas era o que cabia para uma menina de 13 anos. Footing era mais do que isso, eram olhos, pernas, colos, cinturas, ancas, balanço, cabelos, tórax, ombros, pescoços, bocas, peles, roupas, excitação, insinuações — por isso as moças da crônica iam para lá alvoroçadas.

A excitação de olhar era o programa, repetido toda semana, no mesmo dia e local. Havia outros locais, em outro dia da semana, e eram outros olhares. Sentimentos românticos eram despertados com aquele mínimo; eriçava a pele das moças o apenas saber-se destacada do grupo por um olhar caloroso, o perceber-se desejada, sensação cuja intensidade se esvaneceu, porque hoje o mínimo excitante é mais ousado. Provisoriamente casto, o programa mascarava significados de oferta e avaliação, de sedução e conquista — de promessas. A caça oferecia-se ao caçador sob a enorme placa

“É proibido caçar”.

Rapazes tentavam ser engraçados, conquistar sorrisos, que valiam tanto quanto um olhar. Eram bobagens do tipo que sedizia para uma dupla de moças: “Ô de cá, pergunta pra de lá se eu posso falar com a do meio”; ou: “Seu irmãozinho tem telefone?”; ou: “Quantos anos você me dá?”

Eles escolhiam suas amadas, fugazes ou eternas, nesses desfiles de olhares. Era um jogo de subentendidos, teatralizado, porque a sociedade era mais fechada, assim como as pernas femininas, se é que me entendem. A ideia de moças desfilarem para a avaliação masculina é incompatível com a sociedade de hoje. 

Não há mais ingenuidades, embora os olhares de avaliação permaneçam, em outros cenários. As mulheres não mais se prestariam a ser avaliadas pelo olhar de um corredor de homens, e voltar, e passar de novo, sabendo qual era o jogo. Ou será que acreditavam, as caminhantes pelo corredor, que elas, sim, é que avaliavam e escolhiam os artigos da vitrine?

- Concordo, sobrinha: - Footing já era.

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FOOTING NA PRAÇA - texto de Helena Machado

Por Maristela Bleggi Tomasini – Porto Alegre 1920

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