Porto Alegre
Patrimônios no século XX
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1) Remetendo a uma evolução de
tempos e espaços da cidade: as ruas e as avenidas
2) Permanências físicas e
conceituais nas ações de preservação em porto alegre
3) O centro histórico e o
Programa Monumenta em porto alegre
4) Espaços públicos: as praças
da alfândega e da matriz
5) Olhando o futuro e
percorrendo o passado através da materialidade urbana
No século XX a prenda faceira embarcou com
firmeza no trem da história, então parado numa terceira estação cultural: se
casou com o progresso, o herói do momento, se vestiu de madame, dançou tango e
gerou herdeiros modernos que ouviam jazz e bossa nova. Seus filhos construíram
o novo destruindo o velho, ergueram muros cinzentos diante de janelas
luminosas, traçaram pontes e aposentaram barcos, aterraram a água e aguaram a
terra. Tanto causo, tanta coisa, que a memória apaga e que a história salva, ou
inventa!
- A modernização das cidades ao longo do século XX
acarretou, por um lado, novas conexões econômicas e sociais na região de
influência de grandes centros urbanos e, por outro, o abandono de áreas
centrais, portuárias e industriais, sobretudo a partir das últimas cinco
décadas.
- Paralelamente a essas alterações – desmedidas no âmbito da
vitalidade de lugares tradicionais inseridos na cidade – ou mesmo ponderadas
pela ação política, mas descompassadas com a realidade social, fez-se
necessário repensar a construção e a renovação das cidades a partir da chamada
preservação cultural dos patrimônios: material e imaterial.
- Entende-se que algumas ações de preservação cultural, em
suas bases conceituais e operacionais, integram-se aos paradigmas de
desenvolvimento sustentável das cidades, incluindo-se, portanto, no rol das
estratégias primordiais de planejamento urbano. Elas firmam-se, inicialmente,
como ações de mobilização coletiva ou de educação patrimonial, no sentido de
promoverem sensibilizações sobre a história, a memória e a identidade local,
regional e nacional, para, em seguida, concretizarem-se no espaço físico.
- Atuar na renovação da imagem urbana, considerando a
preservação de valores expressos nas arquiteturas e nos traçados de uma cidade
é uma tarefa que envolve o conhecimento da origem e do processo de
transformação físico e social deste espaço. É necessário, portanto, recorrer à
história narrada em texto, em imagem e mesmo à memória contada por aqueles que
vivenciaram a cidade ao longo das décadas, para apropriar-se do ambiente
coletivo que se apresenta.
- É fundamental permitir-se percorrer o espaço irregular da cidade,
no caso em questão da capital gaúcha, que se formou e segue se transformando,
identificando diálogos harmônicos ou desarmônicos entre monumentos
neoclássicos, arquiteturas ecléticas e protomodernistas e as chamadas
reminiscências de um período colonial, com casas baixas, de porta e janela e
platibanda simples, construídas em lotes estreitos, as quais configuram o grão
pequeno na leitura macro da cidade. Nesse percurso é possível ainda fazer
menção a referenciais oriundos do urbanismo francês – especialmente na
configuração de parques em Porto Alegre – e do urbanismo modernista, como na
área dos aterros, onde se situam a Câmara Municipal de Vereadores e o Centro
Administrativo do Estado.
Antes do trânsito pelas macro-leituras da cidade, é
importante saber interpretar as relações atuais que se dão no espaço de origem
– o lugar de fundação – pois ele carrega a mais expressiva imagem externa desta
cidade, ou seja, aquela que é percebida e “comprada” pelos que vêm de fora. No caso de
Porto Alegre, identificar, primeiramente, a imagem do Centro banhado pelo lago
Rio Guaíba, especialmente na interface entre Pórtico Central do Cais, eixo da
Avenida Sepúlveda e Praça Senador Florêncio – conhecida como Praça da Alfândega
(Figura 1) – pode ser um passo certeiro na tradução de tempos que se superpõem
e modos que assinalam nossa urbanidade.
Praça da Alfândega, década
de 1920
Ao fundo, o antigo
prédio dos Correios e Telégrafos e da Delegacia Fiscal
Foto Olavo Dutra. acervo
do IPHAN
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1 Remetendo a uma evolução de tempos e espaços da cidade:
as ruas e as avenidas
Certamente a capital gaúcha embarcou na estação do progresso
a todo custo, marcado pelo período da chamada industrialização, entre 1890 a
1945. Essa fase registra a mudança de fisionomia de Porto Alegre, especialmente
com a elaboração e a execução de planos urbanísticos envolvendo grandes obras
de embelezamento – no sentido da importação de conceitos em vigor na Europa do
século XIX – e de arruamentos, objetivando a abertura de avenidas que
interligassem o Centro – onde tudo acontecia – com o resto do território ainda
pouco habitado.
As obras desse período, entre elas a inauguração do Cais do
Porto, em 1922, e a abertura das avenidas: Borges de Medeiros, entre 1924 e
1928, e Farrapos, em 1940, foram o reflexo mais significativo da necessidade da
capital comunicar-se de maneira rápida e eficaz com sua região de abrangência.
O Cais do Porto, as ruas, as avenidas e as estradas, como a própria BR 116,
representaram a modernização dos eixos e dos acessos da cidade. Suas feições se
deram pela imagem da grande caixa de rua – com calçamento e canteiro central –
e pelas arquiteturas, entre elas: ecléticas, que se disseminaram na Porto Alegre
do início do século XX, art déco e protomodernistas (especialmente na avenida
Farrapos e seu entorno) e modernistas, sobretudo no prolongamento da avenida
Borges de Medeiros.
No interior do núcleo original do antigo Porto São Francisco
dos Casais, o atual Centro Histórico de Porto Alegre, a área de comércio se
estabeleceu na sua parte baixa, nas imediações do Mercado Público, construído
entre 1861 e 1869 com linhas sóbrias e retas e com ornamentos que
caracterizavam a chamada arquitetura neoclássica. A rua que literalmente
beirava a praia durante os primeiros anos de ocupação da cidade, atual Rua dos
Andradas, foi se distanciando da borda com o Guaíba em função dos aterros
realizados desde o final do século XIX e foi sendo ocupada, ainda na primeira metade
do século XX, pelo comércio elegante e pelos casarões de famílias abastadas, na
sua parte alta.
A Rua da Praia passou a abrigar ainda edificações
residenciais de médio porte (nas imediações com a Usina do Gasômetro),
equipamentos culturais – como a Casa de Cultura Mario Quintana (reciclada no
final da década de 1980) – e altos prédios como o Edifício Santa Cruz. Este
canal de ligação entre espaços e tempos – de importância singular para a cidade
– consolidou-se como a rua do fetiche de mercadorias e de passagem de pessoas,
fazendo referência aos conceitos benjaminianos desenvolvidos para a Paris do
século XIX.
Entre as grandes transformações ocorridas na configuração da
cidade, ao longo do século passado, constatamos a multiplicação de centralidades,
entendendo-se esse fenômeno como um reflexo do crescimento de usos, funções e
das características temáticas das inúmeras áreas inseridas no perímetro urbano.
Os novos centros, internos à cidade, possibilitaram o aparecimento de novas
vocações em áreas ou avenidas, tais como: empresariais, a exemplo da Avenida
Carlos Gomes; comerciais, como as avenidas Azenha e a Assis Brasil;
residenciais, com os novos condomínios, entre eles Terra Ville e Jardim Europa,
as quais foram e estão sendo modeladas por arquiteturas de diferentes épocas.
Cabe pensar que essas “novas” arquiteturas edificadas fora do Centro Histórico
encontraram, em alguns casos, exemplares de arquitetura colonial, eclética ou
mesmo neoclássica nas suas imediações, as quais resistiram ou não às renovações.
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2 Permanências físicas e conceituais nas ações de
preservação em Porto Alegre
A investigação do patrimônio cultural urbano e
arquitetônico, a partir da análise das permanências na cidade, ou seja, através
de uma materialidade construída em forma de um mosaico de tempos, técnicas,
tecnologias e valores éticos e estéticos, assim como da sua relação com seus
consumidores, encaminha-nos para a compreensão refinada das estratégias de
preservação e valorização da cultura deste locus específico. Parte-se,
portanto, do pressuposto de que os programas e as ações têm como base
tradicionais paradigmas de preservação, assim como novos conceitos aprimorados
no final do século XX, alguns deles expressos claramente nos planos diretores e
em outras legislações urbanas.
Em Porto Alegre, os primeiros movimentos organizados na
defesa da preservação são registrados no início da década de 1970. Antes disso,
todas as ações nesse sentido buscavam apoio do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional, desde os anos 1930. O município de Porto
Alegre, sempre pioneiro no país em iniciativas desse tipo e também precursor na
elaboração de planos urbanísticos, promulgou, em 1970, a nova Lei Orgânica
Municipal, na qual estava explicitada, pela primeira vez, a preocupação com o
patrimônio cultural da cidade.
A partir da Lei Orgânica foi criada uma comissão que
formulou uma primeira listagem de 59 bens a serem preservados. Considerando
critérios de ordem histórica, artística e cultural, a lista indicava prédios,
conjuntos e elementos arquitetônicos, de propriedade pública ou privada e de
usos residenciais, comerciais e institucionais. Para a arquiteta Elena Graeff: “[...] esta foi,
portanto, a primeira versão de um inventário de bens significativos para a
história da identidade da cidade” (GRAEFF , 2001, p.40), na qual se
encontra, nitidamente, a predominância de exemplares de valor histórico ou
daqueles que representam características relacionadas à arquitetura de origem
portuguesa ou dita açoriana. No âmbito das ações físicas, verificam-se, a
partir deste período, intervenções através do uso do fachadismo, ou seja, com a
intenção de preservar apenas as fachadas ou algum elemento isolado da
edificação, prática que persiste até hoje.
Ainda nos anos 1970 foi promulgado o Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – o 1° PDDU – no
qual está reconhecida a importância da preservação do patrimônio através de
dispositivos de proteção e incentivo. O grupo responsável pela elaboração das
diretrizes do item Subárea de Paisagem Urbana apresenta uma nova listagem que
arrolava aproximadamente 2 mil imóveis, localizados em diversos bairros da
cidade, confirmando a consciência dos planejadores em relação à amplitude
geográfica das ações preservacionistas. Nesta listagem estão classificados dois
tipos de imóveis: os de interesse sociocultural, que deveriam ser preservados,
e os de adequação volumétrica, que poderiam ser substituídos.
Essa trajetória da preservação reconhecida em lei
influenciou a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) da Secretaria
Municipal da Cultura a dar início, em 1989, ao trabalho de inventariar a área
central de Porto Alegre. O projeto tomou proporções que envolveram outros
órgãos, assim como ampliou sua cobertura em bairros próximos ao Centro. Grande
parte dos imóveis da listagem de 1977 já havia sido descaracterizada ou
demolida.
A partir desse projeto passaram a ser valorizados exemplares
significativos da arquitetura dos anos quarenta, cinqüenta e sessenta,
característicos do período deco e do modernismo. Como conseqüência da nova
postura frente à preservação nas áreas urbanas, a EPAHC reformulou os fundamentos para a valorização dos bens.
Atualmente, os critérios adotados dividem-se em quatro instâncias de abordagem:
a instância cultural, que considera os valores históricos e/ou referenciais do
bem para a população; a instância morfológica, que considera os valores sob a
ótica da história da arquitetura; a instância técnica, a qual analisa os
valores construtivos e, por fim, a instância paisagística, que aborda a relação
do bem como o entorno.
Em Porto Alegre, o Plano
Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental -PDDUA, de 1999, introduziu
uma alteração conceitual em relação aos bens, através da delimitação de Áreas
Especiais de Interesse Cultural, recebendo regimes urbanísticos específicos com
vistas à potencialização e à preservação de qualidades ambientais
diferenciadas. Esta evolução no trato dos bens culturais nos leva a pensar numa
consciência acerca do espaço urbano, ou seja, da compreensão por parte de
legisladores e planejadores sobre a cidade como bem patrimonial e,
especialmente, sobre uma postura flexível diante de sua permanente
transformação.
Em 1993, iniciou-se, em Porto Alegre, um novo processo de
planejamento participativo, o qual culminou com a realização, em 1996, do
Congresso Cidade Constituinte. Neste momento, foram discutidas e aprovadas
diretrizes que contemplaram aspectos como a implantação de um Programa de
Corredores Culturais para a Cidade visando, prioritariamente, à qualificação
das áreas comerciais do Centro através do patrimônio arquitetônico, instalação
de equipamento de mobiliário urbano, disciplinamento da publicidade e do uso do
espaço público (do comércio informal), a ser proposto em conjunto pelas
instituições e associações ligadas à preservação, comércio, indústria e
moradores da área central da cidade.
Observa-se que essas diretrizes – assumidas pela Secretaria
Municipal da Cultura, na forma de Programa do Corredor Cultural – trouxeram à
área central de Porto Alegre, especialmente à Rua da Praia, a possibilidade de
discussão sobre o que está sendo descaracterizado pelo abandono ou pela falta
de informação e de que forma vêm ocorrendo essas modificações. Mais do que a
preocupação com aspectos arquitetônicos buscou-se possibilitar a reflexão sobre
identidade cultural e urbana dos antigos e novos moradores/usuários do Centro.
O entendimento das especificidades evolutivas e históricas
dessa área e a compreensão de tudo que ela delimita e sugere foram fundamentais
para estruturar ações de reversão do processo de abandono. O arquiteto Luiz Merino Xavier tece considerações
sobre a degradação ocorrida nas áreas centrais das principais cidades
brasileiras, afirmando que esse processo “[...] é fruto de uma intensa valorização imobiliária
ocorrida nos primeiros decênios do século XX” (XAVIER , 2003, p.57).
A estrutura urbana brasileira do século XX havia herdado do
século anterior (XIX) um modelo morfológico colonial baseado na residência
unifamiliar. Esse modelo permaneceu inalterado até as primeiras décadas do
referido século. Foi apenas com o processo de industrialização que algumas
capitais brasileiras passaram a ter as tipologias mistas (unifamiliares e
comerciais), em suas áreas centrais, paulatinamente substituídas por tipologias
multifamiliares. Xavier observa ainda que:
Quando a valorização do solo atingiu um ponto em que o
prédio passou a valer menos que o terreno, a demolição ocorreu. Este processo
foi bastante rápido: em trinta anos, boa parte do estoque de prédios do século
XIX foi substituído por um novo tecido urbano, denso e verticalizado. (XAVIER,
2003, p.57)
A verticalização – que pode ser entendida como uma
influência modernista ou como a importação da imagem de cidades “capitalistas”
e de um modelo experimentado nos Estados Unidos – representou, além do impacto
morfológico (do “arranha-céu”), uma nova forma de morar e de trabalhar,
permitindo, inicialmente, uma intensa revalorização econômica e simbólica das
áreas centrais das cidades brasileiras. Entretanto, sua aplicação abusiva, sem
controle de qualidade do espaço e do conforto da população, sem relação
adequada com a caixa das ruas e sem previsão de vagas de estacionamento,
trouxe, muito rapidamente, suas conseqüências negativas, degradando a área
central já a partir da década de 1960.
A alta densidade ali instalada e os problemas decorrentes,
como trânsito caótico e falta de segurança, afastaram a população residencial
daquela área. Ao Centro coube, a partir daí, a função especializada de um ponto
de negócios, serviços e compras, com um fluxo elevado de pessoas durante o dia
e restrito à noite. Esse esvaziamento fora dos horários comerciais sofreu uma
inversão a partir das sucessivas crises da década de 1980, quando as antigas
edificações passaram a ser ocupadas pelos setores populares, em busca de uma
excelente acessibilidade, de aluguéis baratos e da grande movimentação.
Xavier entende que a elite cultural – aquela que consumiu
ativamente o Centro na primeira metade do século - relacionou-se de forma dúbia
com essas transformações, revelando um sentimento de perda do espaço de sua
memória. Suas referências ainda estão nos antigos cafés, nas livrarias e
confeitarias sempre citadas, mas muitas delas inexistentes. A Rua da Praia
abrigou muitos desses lugares e, ainda hoje, é a grande interface urbana e
social do Centro de Porto Alegre. Historicamente, ela comportou-se como vitrine
de quem passa, quer ver e ser visto. Atualmente, ela é entendida nas suas
muitas faces. Sua fragmentação caracterizada pela mistura de atividades
comerciais e culturais, bem como residenciais, suscita a sua compreensão em
diversos níveis, os quais acusam um manejo sensível desse processo.
A partir desse quadro de análise foram formuladas as
diretrizes do Programa Corredor Cultural de Porto Alegre, tomando como ponto de
partida a via mais simbólica da cidade: a Rua da Praia. Qualquer ação nesta
rua, certamente, acarretaria um reflexo imediato em todo o Centro. Ao contrário
do que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, o Corredor Cultural em Porto Alegre
não foi regulamentado por lei, mas respaldado nas diretrizes do Congresso da
Cidade. Ele se valeu não de ações fiscais ou legais, mas de estratégias que
interferiram na profundidade da relação afetiva da população da cidade, da
região, do Estado e dos turistas com o Centro. O projeto visou assim promover a
convivência de épocas, de culturas, de etnias, de segmentos sociais. Com vistas
a novas ações no Centro, o Corredor Cultural cumpriu seu papel de programa
piloto, tendo em vista que, no final da década de 1990, a cidade iniciou um
novo processo.
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3 O Centro Histórico e o Programa Monumenta em Porto Alegre
O Centro Histórico de Porto Alegre (Figura 2) – delimitado
pelas avenidas Loureiro da Silva e Borges de Medeiros e também pelo Cais -
caracteriza-se por apresentar uma enorme diversidade em sua fisionomia, fruto
da convivência entre estilos arquitetônicos distintos, pela forte presença da
interface com o Rio Guaíba e por abrigar lugares evocativos da história do Rio
Grande do Sul. A exemplo de outros centros históricos no país, Porto Alegre
apresenta a “cidade alta”, com foco na Praça da Matriz – o centro cívico gaúcho
- em torno do qual situam-se os palácios representativos dos três poderes:
executivo (Palácio Piratini), legislativo (Palácio Farroupilha) e religioso
(Catedral Metropolitana).
Mapa do Centro
Histórico de Porto Alegre, com o eixo da Rua da Praia e as duas praças – da Alfândega
e da Matriz - destacadas
O norte está indicado
para cima
Edição da autora
Na parcela baixa, encontra-se a Praça da Alfândega, na qual
predomina o caráter misto das atividades. Sua configuração urbana, somada à
presença de edificações construídas entre o final do século XIX e início do
século XX, dão um caráter especial àquela área.
Essas características arquitetônicas, urbanas e históricas
destacaram a importância da cidade no contexto nacional e levaram ao tombamento
do Sítio Histórico de Porto Alegre, pelo IPHAN, em 2000. Esse tombamento foi o
marco inicial para a posterior instalação do Programa Monumenta na cidade.
O Projeto Monumenta Porto Alegre – o qual integra um amplo
programa de valorização e conservação do patrimônio das cidades brasileiras –
propôs, inicialmente, como uma de suas atividades o Plano de Interpretação do
Centro Histórico. Este plano definiu-se enquanto um conjunto de ações que
tinham como objetivo democratizar o acesso às informações históricas sobre a
cidade, contribuindo para a apropriação do patrimônio por parte dos visitantes
e moradores, além de proporcionar uma reflexão sobre as mudanças operadas no
transcorrer do tempo. Entende-se, desta forma, que o patrimônio legitimado
pelos recursos legais é apenas um dos componentes da memória, da cultura e de
uma coletividade, sendo necessário, portanto, remexer a história e dar luz a
quem quiser ver seus processos evolutivos.
Um plano de interpretação prevê o levantamento de todos os
centros culturais e espaços a serem potencializados no sentido acima exposto,
bem como a realização de projetos de educação patrimonial e de capacitação de
pessoal para agir e interagir com os patrimônios materiais e imateriais.
Entretanto, é importante conhecer as estratégias do Monumenta de atuação no
espaço físico, compreendidas na sua complexidade, a começar pela chamada área
de influência, que corresponde à totalidade do Centro Histórico de Porto
Alegre, através da qual são dimensionadas as abrangências do projeto
A Área Elegível do Programa (Figura 3), segundo consulta ao
Perfil do Projeto, inclui o “Sítio Histórico das Praças da Matriz e da Alfândega”
(tombado pelo IPHAN, em 2000), o entorno do Sítio Histórico e o entorno de um
conjunto de imóveis de interesse de preservação.
Discriminam-se, então, três poligonais de trabalho:
(1) a do Sítio Histórico propriamente dito
(2) a do Entorno do Sítio Histórico, incluindo
aproximadamente 270 imóveis;
(3) A Área do Projeto com aproximadamente 280 imóveis e um
total de cerca 5 mil e quinhentas economias residenciais e não-residenciais.
Esta área se encontra totalmente inserida no Centro
Histórico e pode ser lida como um recorte legítimo do espaço que abriga a
diversidade e a história de Porto Alegre.
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Área do Projeto
Monumenta Porto Alegre e Sítio Histórico urbano tombado em nível federal
Fonte: Programa
Monumenta
Até a data de tombamento do Sítio Histórico, a União
possuía, no Centro de Porto Alegre, quatro imóveis tombados: o Pórtico Central
e Armazéns A e B do Porto, o prédio dos Correios e Telégrafos (atual Memorial
do Rio Grande do Sul), o Solar dos Câmara e a Igreja Nossa Senhora das Dores.
Com o tombamento do Sítio, acrescentaram-se, ao acervo, as praças da Alfândega
(inclusive os jacarandás, como proteção ambiental) e da Matriz e os prédios do
Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), a Biblioteca Pública do Estado, o
Theatro São Pedro e o Palácio Piratini. O Entorno do Sítio Histórico e do
Conjunto de Imóveis de Interesse de Preservação compõe-se de oito imóveis relevantes
no Centro (tombados estaduais e municipais), incluindo, ainda, o primeiro bem
tombado federal de Porto Alegre, a Igreja Nossa Senhora das Dores.
O Projeto Monumenta Porto Alegre, que permanece atuando até
os dias de hoje, é composto por órgãos governamentais das três instâncias,
sendo eles: - a Prefeitura Municipal de Porto Alegre – que gerencia os
trabalhos através de sua equipe executora, sediada nos altos do Mercado
Público; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) – que
acompanha a execução dos projetos nas edificações e o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – que participa de decisões conjuntas.
Constata-se a preocupação com a caracterização e o
diagnóstico dos aspectos urbanísticos, socioeconômicos e ambientais do local
trabalhado, sendo fundamental a busca de dados históricos para este estudo.
Pressupõe-se a participação ativa do setor privado, bem como da comunidade
nesse processo.
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4 Espaços públicos: - as praças da Alfândega e da Matriz
As intervenções previstas para os espaços públicos são a
grande expectativa da contribuição do Monumenta na cidade. Os espaços aqui
abordados são definidos pelas Praças da Matriz e da Alfândega, bem como seus
entornos imediatos, compreendendo também a avenida Sepúlveda – importante eixo
visual ao Cais do Porto.
As duas praças sofreram poucas modificações a partir das
primeiras décadas do século XX, ao contrário de seu entorno e da cidade como um
todo. A mudança mais profunda na Praça da Alfândega se deu com a ampliação de
seu espaço a partir da integração da Praça Rio Branco, limite aos prédios dos
Correios e Telégrafos (atual Memorial) e da Delegacia Fiscal (MARGS). O projeto
que visava integrar à praça o terreno resultante da demolição da antiga Caixa
Federal não se efetivou e, no espaço resultante, foi construída uma nova
edificação em estrutura moderna.
Na Praça da Matriz (Figura 4), a sua configuração original
foi modificada com a substituição de duas edificações e com o surgimento de uma
terceira. A primeira foi a demolição da antiga Igreja Matriz, edificada no
século XVIII, e a construção, no seu lugar, da atual Catedral Metropolitana na
década de 1930. A segunda foi a destruição através de um incêndio, em 1949, do
prédio do Tribunal do Júri, construção idêntica ao Theatro São Pedro, e sua
substituição, na década seguinte, por um edifício moderno. Por fim, a terceira,
foi a transferência de um importante espaço de sociabilidade, ao ar livre, do
início do século XX: o Auditório Araújo Viana, pelo atual edifício da
Assembléia Legislativa.
A antiga Praça da
Matriz com os prédios gêmeos (Theatro São Pedro e Tribunal do Júri)
Fonte: EPAHC/SMC
Em relação aos aspectos urbanísticos, fica clara a
preocupação do Programa Monumenta em identificar fluxos de pessoas e veículos,
bem como resgatar eixos visuais que comuniquem os espaços satisfatoriamente. De
acordo com o projeto para a restauração da Praça da Alfândega, a intervenção
foi prevista em dois planos: o material e o humano. No plano material, a medida
lançada em projeto é a recuperação da praça, restaurando pisos e monumentos,
redesenhando canteiros e caminhos, trazendo ao presente a sua fisionomia
histórica.
A intervenção na Praça da Alfândega é tema de diálogo
permanente entre as instituições envolvidas e o público que freqüenta o local.
Segundo Luiz Merino Xavier, o maior
desafio na implantação do projeto diz respeito aos “trabalhadores da praça”, ou
seja, o chamado material humano. Artesãos e engraxates estão contemplados pelo
Monumenta, sendo que os primeiros já participam de um processo de
recadastramento e requalificação para que o artesanato produzido mantenha-se
característico de Porto Alegre.
Para os engraxates está prevista sua relocalização nas
proximidades da sede da Caixa Econômica Federal, não sendo descartada a
proposta do próprio grupo de que alguns deles sejam transferidos para outros
locais do Centro, como a rodoviária e a Avenida Borges de Medeiros. Estas
medidas encerram uma alteração significativa na imagem daquele espaço e nas
suas relações de apropriação e uso.
Nas intervenções pontuais sobre os monumentos, o Programa
vem realizando restaurações de importantes exemplares arquitetônicos, entre os
quais destacam-se: a Igreja das Dores, a Biblioteca Pública do Estado - espaço
nobre que guarda marcas da doutrina positivista amplamente difundida no Estado
no início do século XX – e o casarão destinado a abrigar a Pinacoteca Ruben
Berta, com o lançamento da obra anunciado recentemente. Estas ações sobre a
materialidade arquitetônica retomam conceitos e valores que vêm se renovando
desde o início do século passado.
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5 Olhando o futuro e percorrendo o passado através da
materialidade urbana
Apreender a cidade envolve percorrê-la, olhá-la, observá-la
e ser por ela observado. Esta experiência nos permite reconhecer a chamada
imagem interna que cada um de nós carrega de sua própria cidade e, dependendo
da capacidade de afastamento individual, possibilita vivenciar a imagem
externa, ou seja, aquela como a cidade é percebida e narrada ao longo do tempo.
Cada consumidor do espaço urbano elenca um rol de lugares nos seus armários da
memória e os projeta em situações futuras. Nesta mescla de colecionadores de
“cidades internas” encontram-se os legisladores, planejadores e
preservacionistas a fim de executar a difícil tarefa de ler tempos e filtrar
espaços a serem preservados.
Conceitos de intervenção pontual e de preservação do
patrimônio tangível e intangível superpõem-se na tessitura de um planejamento
de cidade legível e sustentável. Sobre legibilidade podemos nos referir a
algumas cidades no mundo, como a Veneza inundada e interligada por pontes e a
Paris que se transformou no século XIX, a partir das aberturas de grandes
avenidas – os bulevares – e de um modelo global de intervenção denominado “haussmannização”.
Ainda nesta linha, pensamos num projeto de renovação urbana sofrida pelo Rio de
Janeiro, no século XIX, que marcou expressivamente a influência européia no
Brasil.
No caso da capital gaúcha, os diagnósticos históricos que
precederam os programas de preservação do patrimônio edificado e urbano, aqui
descritos, revelam claras influências estrangeiras nos traçados de parques ou
mesmo em algumas arquiteturas monumentais, registrando o período das imigrações
alemã e italiana. Por outro lado, a leitura desses planos e dessas ações nos
mostra um refinamento na compreensão das origens da cidade, pois partem de uma
visão plural do espaço, da história e da complexidade de relações. A
preservação do patrimônio adquire, portanto, um sentido de modernização do
corpus edificado e urbano remanescente destinado ao usufruto pleno das gerações
futuras.
A desejada cidade da estratificação temporal denuncia ações
acertadas ou equivocadas no seu corpo. Além disso, ela – a cidade que aí está –
aponta sem maiores reservas uma modernidade reduzida a uma lista de paradigmas
e um bloqueio a novas possibilidades. Ela acusa assim, na sua feição urbana,
caminhos para preservação de seus valores culturais, conduzindo olhares e mãos
vindos de instituições governamentais na direção das decisões a serem tomadas.
A inclusão planejada de agentes populares neste processo garante exitosos
projetos a serem descritos, revistos e interpretados no futuro.
***§***
Jeniffer Cuty
Arquiteta e urbanista formada pela UFRGS. Doutoranda em
Planejamento Urbano e Regional /UFRGS Professora de Patrimônio Cultural em
Porto Alegre e no curso de Restauro da UNESCO. Mestre em Planejamento Urbano e
Regional / UFRGS .
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Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997.
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MARTINI, Maria Luiza. Corredor Cultural – Rua da Praia.
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MEIRA, Ana Lúcia. O Passado no futuro da cidade: políticas
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PESAVENTO, Sandra. Memória Porto Alegre: espaços e
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SOUZA, Celia Ferraz de ; MULLER, Doris Maria. Porto Alegre e
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